Combat stress interferes with police behavior and decision-making. It can alter police officers' vision, hearing, perception of time, and memory. Prior shootings or information about weapons significantly increase the likelihood of shooting an unarmed suspect. Additionally, officers may be influenced to fire their weapons after hearing colleagues' gunshots or may fire involuntarily due to sudden movements. There is also a time lapse between the suspect ceasing resistance and the officer stopping using force. All these effects impact the analysis of the subjective element of any criminal conduct committed by police officers in the line of duty. Here, we present an interpretation of these effects from the perspective of the main legal theories on intent and malpractice negligence in legal doctrine in Criminal Law.
Efeitos psicofísicos do estresse de combate: dolo, culpa e outras considerações acerca da análise jurídica do uso da força policial
O estresse de combate interfere no comportamento e na tomada de decisão de policiais. O estresse pode alterar a visão, a audição, a percepção do tempo e a memória de policiais. Um confronto armado anterior ou informações sobre armas aumentam significativamente a probabilidade de atirar em um suspeito desarmado. Além disso, policiais podem ser levados a disparar suas armas a partir do disparo de outros colegas ou disparar involuntariamente devido a um movimento súbito. Há, ainda, um lapso entre a cessação da resistência do suspeito e a interrupção da força pelo policial. Todos esses efeitos repercutem na análise do elemento subjetivo do agente eventuais condutas criminosas cometidas por policiais no exercício da função. Apresentamos aqui uma interpretação desses efeitos sob o prisma das principais teorias jurídicas sobre dolo e culpa presentes na doutrina em Direito Penal.
Palavras-chave: polícia; força policial; excesso; dolo; culpa.
No mundo ocidental contemporâneo, a polícia é a única profissão que mantém o poder-dever de utilizar força física contra cidadãos em situações não relacionadas a conflitos armados, externos ou internos (ALPERT; DUNHAM, 2004). A capacidade de empregar legitimamente a força é o núcleo de qualquer instituição policial, sendo sua raison d’être. No entanto, é crucial destacar que esse papel central da força não significa que as atividades ordinárias e rotineiras da polícia se limitem ao seu uso (BITTNER, 1970). O uso da força representa o aspecto mais crítico da atuação policial, pois o uso inadequado pode comprometer a relação de confiança entre a polícia e a sociedade (HARRIS, 2009). Entre os pesquisadores da área policial, a definição mais comum de força é: “ação física empreendida para controlar o movimento ou a liberdade de outro indivíduo” (ALPERT; DUNHAM, 2004).
A percepção de uma ameaça desencadeia um conjunto de respostas comumente denominado medo, ansiedade ou estresse de combate (ou simplesmente estresse, conforme adotado pela maioria da literatura sobre o tema). O estresse de combate inclui reações fisiológicas que impactam o desempenho (SIDDLE; SIDDLE, 2005). Esses efeitos sobre o desempenho indicam que um estímulo estressor exerce algum grau de controle sobre o comportamento de uso da força. Isso implica que os comportamentos exibidos por policiais sob elevado estresse não são inteiramente controlados por sua vontade, especialmente nas decisões tomadas.
Portanto, a influência do estresse de combate sobre o comportamento do policial pode ter repercussões jurídicas, considerando que afeta o elemento subjetivo de eventual conduta antijurídica. Ocorre que até nosso conhecimento, nenhum estudo concatenou os efeitos do estresse sobre o comportamento policial, documentados na literatura das Ciências Policiais e da Justiça Criminal, com as teorias do dolo e da culpa aceitas pelo direito brasileiro. Essa ligação é fundamental para que a análise jurídica de ocorrências policiais se tornem mais justas e baseadas no conhecimento científico.
Deste modo, estabeleceu-se como objetivo geral do presente artigo investigar as implicações dos efeitos fisiológicos e psicológicos do estresse de combate em policiais sobre o dolo e a culpa em casos de uso da força, à luz do direito Brasileiro. Para tanto, traçaram-se os seguintes objetivos específicos: (1) Identificar os principais efeitos fisiológicos e psicológicos decorrentes do estresse de combate em policiais; (2) Descrever as teorias do dolo aceitas pelo Direito Penal brasileiro; (3) Descrever as teorias da culpa aceitas pelo Direito Penal brasileiro; (4) Interpretar os efeitos mencionados à luz dessas teorias.
Em regra, os doutrinadores afirmam que o Direito Penal Brasileiro adota a teoria da vontade. À exceção de Damásio de Jesus, os doutrinadores entendem que o Direito Brasileiro também adotou a teoria do assentimento ao tratar do dolo eventual.
Seguindo a Teoria da Vontade, o dolo é a conjunção de dois fatores: a consciência do fato praticado (fator cognitivo, intelectual ou intelectivo) e a vontade de realizar a ação e produzir o resultado (fator volitivo) (ASSIS, 2008; BITENCOURT, 2019; CAPEZ, 2020; GRECO, 2017; JESUS, 2013; MIRABETE; FABBRINI, 2010). A ausência de qualquer desses fatores afasta a existência de dolo na conduta. Para Mirabete (MIRABETE; FABBRINI, 2010, p. 126) e para Greco (2017), o dolo estaria atrelado à má-intenção, à malícia, à má-fé criminosa.
O dolo deve estar presente no momento da ação (GRECO, 2017; NUCCI, 2023). Assim, a simples aprovação de um resultado – por exemplo, alegrar-se após constatar a morte de um oponente – não deve ser considerada como dolo em relação à conduta que produziu tal resultado (GRECO, 2017).
Segundo Bitencourt (2019, p. 114), “Culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada em conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível”. Para Mirabete (MIRABETE; FABBRINI, 2010), a conduta de crimes culposos envolve a vontade de cometer o ato, mas não direcionada ao fim ilícito. Abordamos os mais relevantes à nossa análise. Os elementos constituintes de um fato típico culposo variam conforme o doutrinador. Para Nucci (2023) e Capez (2020) são: (1) concentração na análise da conduta voluntária do agente; (2) ausência do dever de cuidado objetivo; (3) resultado danoso involuntário; (4) previsibilidade; (5) ausência de previsão (culpa inconsciente); (6) tipicidade; (7) nexo causal. Abordamos, agora, considerações acerca desses elementos que serão relevantes para a análise que pretendemos.
Damásio de Jesus (2013) distingue entre previsibilidade objetiva, baseada no homem prudente, e subjetiva, baseada nas condições pessoais do sujeito. Nucci (2023) propõe um critério objetivo-subjetivo, considerando tanto a média social quanto a capacidade individual do autor. Mirabete (MIRABETE; FABBRINI, 2010) e Capez (2020) tratam a previsibilidade de forma objetiva, ligada à perspicácia comum.
Mirabete (MIRABETE; FABBRINI, 2010) afirma que o dever de cuidado se aplica a todos e que há ações esperadas em determinadas circunstâncias. Ele enfatiza que o dever de cuidado de uma pessoa deve considerar o comportamento esperado dos outros, incluindo a própria vítima – o chamado princípio da confiança
Para Mirabete (MIRABETE; FABBRINI, 2010, p. 133), dever de cuidado objetivo relaciona-se com a conduta esperada “de um homem razoável e prudente em lugar do autor”. Três são as formas de manifestação da inobservância do cuidado objetivo (também chamadas modalidades de culpa): imprudência, negligência e imperícia. Para Capez (2020), imprudência é uma ação descuidada ocorrendo durante a ação, enquanto negligência é a falta de cuidado antes de iniciar a conduta. A imperícia é a inaptidão ou insuficiência técnica, momentânea ou não, para realizar uma tarefa específica no âmbito profissional ou técnico. (GRECO, 2017; NUCCI, 2023).
O princípio do risco tolerado reconhece que certas atividades essenciais envolvem riscos inerentes, sendo consideradas ilícitas apenas quando falta a atenção e cuidado especiais necessários. Bitencourt (2019) e Mirabete (MIRABETE; FABBRINI, 2010) destacam que comportamentos perigosos, mas indispensáveis, não podem ser considerados ilícitos devido à sua natureza emergencial. Capez (2020) reforça essa ideia, enfatizando que a prática de ações necessárias, embora arriscadas, deve ser aceita, pois não há alternativas viáveis.
O erro profissional é um incidente inesperado e perdoável, não vinculado ao uso inadequado do conhecimento científico, mas sim à imperfeição e imprevisibilidade dos saberes humanos. Diferente da imperícia, que é um erro grosseiro, o erro profissional reflete a diversidade de habilidades e competências individuais. Na esfera jurídica, se o profissional agiu conforme os princípios fundamentais de sua área ou teve razões justificáveis para se desviar deles, não será responsabilizado criminalmente (BITENCOURT, 2019; NUCCI, 2023).
Damásio de Jesus (2013) e Nucci (2023) rejeitam a ideia de culpa presumida pela violação de normas, argumentando que a culpa deve ser comprovada pela acusação. Da mesma forma, Capez (2020) destaca a necessidade de prova concreta para estabelecer a culpa, podendo a mera violação de regulamentos resultar em infração dolosa por si, ou em ilícito administrativo.
Adotou-se como método a revisão narrativa da literatura. A literatura sobre os efeitos do estresse foi buscada a partir das referências usadas por Eleuterio (2020) e pelas “Diretrizes para a Investigação de Tiroteios Envolvendo Policiais, Mortes Relacionadas a Prisões e Mortes Sob Custódia” (ROSS; VILKE, 2018) – Guidelines for investigating officer-involved shootings, arrest-related deaths, and deaths in custody. Também foram consultadas as referências das obras pertinentes citadas nas duas obras anteriores. Por fim, foram consultados estudos que citaram as obras incluídas pelos dois critérios anteriores (citation tracking).
Os estudos relataram que os policiais frequentemente experimentam distorções na visão (ARTWOHL, 2008; HONIG; ROLAND, 1998; HONIG; SULTAN, 2004; KLINGER; BRUNSON, 2009; LEWINSKI et al., 2016; NIEUWENHUYS; CAÑAL-BRULAND; OUDEJANS, 2012; ROSS; MURPHY; HAZLETT, 2012; ROSS; SIDDLE, 2003; SOLOMON; HORN, 1986), dentre as quais destacamos a visão em túnel. Segundo Ross e Murphy (2018), os policiais podem perder até 75% da visão periférica sob estresse, de modo a não perceberem estímulos ao redor. Em cerca de 81% dos incidentes investigados, os policiais focaram de forma intensa na ameaça (suspeito ou arma). Em 60% dos casos, os policiais exibiram distorções na percepção de profundidade – o que pode se traduzir em um engano na estimativa da distância em relação a um suspeito, por exemplo. Dificuldades no reconhecimento de cores, objetos e do próprio suspeito também foram comuns.
Outra distorção bastante comum ocorre na percepção do tempo. A maioria dos policiais relatou ter percebido o tempo em câmera lenta. Porém alguns relataram ter percebido o tempo de modo acelerado ou ambos os efeitos, de forma alternada ao longo do evento. Alterações na percepção de sons também são comuns. Podem se manifestar como uma redução na intensidade de alguns sons, um aumento na intensidade de outros ou, até mesmo, na exclusão de sons emitidos durante o evento estressante. No estudo de Ross, Murphy e Hazlett (2012), em 52% dos casos, os policiais não se recordaram de uma testemunha gritar “arma” referindo-se ao suspeito.
A literatura indica que se se esperam divergências entre a percepção dos policiais e o que é capturado por câmeras. Por isso, a análise de vídeos deve ser cautelosa e comparada com os relatos de policiais e testemunhas. Murray et al. (2024) mostraram que policiais perceberam 80,5% dos elementos cruciais para a tomada de decisão, enquanto as câmeras captaram apenas 66,2%. Em situações com armas de fogo, as câmeras falharam em captar o suspeito pegando sua arma de fogo e o disparo da arma em quase metade das ocasiões.
No experimento de Taylor (2020), com 306 policiais dos EUA, informar aos policiais que o suspeito estava armado aumentou a taxa de disparos em um suspeito desarmado de 28,3% para 62% (um aumento de mais de 120%). Por outro lado, informar que o suspeito falava ao celular reduziu essa taxa para 6% (uma redução de 79% nos erros).
Nieuwenhuys, Oudejans e Savelsbergh (2012) submeteram 36 policiais neerlandeses a testes de tiro em um simulador. Os testes ocorreram em duas condições: uma de baixo estresse (o disparo do oponente produzia apenas som) e outra de estresse elevado (o oponente dispava projéteis plásticos, causando dor). O estresse elevado provocou um aumento da taxa de disparos indevidos de 11,81% para 18,29% (55% de aumento). Ou seja, há uma chance em cinco de um policial efetuar um disparo contra um suspeito que se rende em condições de estresse elevado, como logo após um confronto armado. Os baixos tempos de resposta encontrados indicam uma inibição do córtex pré-frontal e maior ativação da amígdala, tornando a decisão de atirar uma reação ao medo de ser alvejado, em vez de um processamento racional da situação.
Nieuwenhuys, Savelsbergh e Oudejans (2015) realizaram um estudo similar com 57 policiais, divididos em grupos submetidos a diferentes treinamentos. Após três sessões de 1 hora, nenhum método de treinamento mostrou eficácia significativa em reduzir disparos indevidos sob estresse, com aumentos de 60% a 123%. Concluíram que os efeitos da ameaça são persistentes e difíceis de mitigar.
O “tiro por contágio” é a decisão de um policial por disparar sua arma de fogo a partir do disparo efetuado por outro policial presente no mesmo local, e não não a partir de uma ameaça (WHITE; KLINGER, 2012). O estudo observacional de White e Klinger (2012), com 808 casos, verificou que o número de policiais que disparam suas armas durante uma ocorrência não está significativamente relacionado com o número médio de tiros disparados por policial. Segundo os autores, essa relação sugeriria a inexistência do efeito do “tiro por contágio”.
Contudo, essa análise indireta foi contestada pelo experimento de (DECARLO; DLUGOLENSKI; MYERS, No prelo), a primeira evidência experimental do fenômeno. Policiais de diversos departamentos dos EUA (n = 169) participaram de simulações de ocorrências envolvendo indivíduos potencialmente armados. A presença de outros disparos afetou significativamente o comportamento de tiro dos policiais. Eles eram mais de dez vezes mais propensos a disparar quando havia outros disparos no ambiente. Além disso, também apresentaram uma cadência de tiro três vezes maior – i.e., atiravam mais rápido que na condição-controle sem outros disparos no ambiente –, resultando em muito mais disparos efetuados.
Lewinski, Hudson e Dysterheftt (2014) investigaram os tempos de resposta de policiais ao comando de cessar disparos, em um experimento com 102 policiais. Descobriram que, em média, o tempo de resposta foi de 0,29 segundos, mas pode variar significativamente, chegando a 1,6 segundos. Os policiais dispararam em média 1,06 vezes após o comando, com alguns fazendo até 6 disparos. Os pesquisadores ressaltaram que o tempo de resposta após o estímulo de parada é influenciado pelo momento em que o estímulo é percebido. Por isso, contextos com distorções visuais, como baixa luminosidade ou fumaça, podem agravar o efeito sobre o tempo de reação dos policiais (LEWINSKI; REDMANN, 2009). Os tempos de reação podem permitir mudanças nas circunstâncias, como movimentos do suspeito, comprometendo a avaliação posterior da legitimidade dos disparos – como quando o suspeito estende um dos braços instintivamente ou vira-se para fugir após disparar.
Heim, Schmidtbleicher e Niebergall (2006a) investigaram os disparos involuntários por movimentos corporais, observando que fatores como contrações musculares involuntárias – decorrentes da ativação de outros músculos ou de reações de susto – podem levar a toques no gatilho, resultando em disparos acidentais. No estudo de Heim, Schmidtbleicher e Niebergall (2006b), conduzido com alunos universitários, certos movimentos provocaram um aumento da força na mão suficiente para disparar a arma. Destacaram-se: salto máximo com ambas as pernas (60% dos casos), desequilíbrio na plataforma (42% dos casos) e chutes ipsilateral (36%) e contralateral (31%).
O'Neill et al. (2018) analisaram casos de disparos acidentais por policiais nos EUA, identificando que 24% deles foram devido à co-ativação muscular, principalmente em situações de alto risco, como abordagens veiculares e a edificações. Também houve disparos acidentais em perseguições a pé (4,1%) e ao conter um suspeito (3,5%). A maior parte dos casos de co-ativação foi decorrente de perda de equilíbrio (39%), movimento da outra mão (29,3%), ou perda da empunhadura da arma (19,5%).
Diversos estudos experimentais e observacionais encontraram alterações na memória devido a eventos estressantes, especialmente confrontos armados (ARTWOHL, 2008; DI NOTA et al., 2021; HARTMAN et al., 2017; HONIG; ROLAND, 1998; LEWINSKI, 2008; LEWINSKI et al., 2016, 2016; ROSS; MURPHY, 2018; ROSS; MURPHY; HAZLETT, 2012). Alterações na memória foram relatadas em cerca de 35% dos encontros, incluindo distorções na memória e recordações fragmentadas dos eventos (ARTWOHL, 2008; ROSS; MURPHY, 2018). Até mesmo a posição do suspeito no momento do confronto pode ser distorcida pela memória. No experimento de Hope et al. (2016), quase 20% dos policiais relataram erroneamente que o suspeito apontara uma arma para eles, quando na verdade a arma permaneceu na cintura do suspeito. Situações de estresse prejudicam os processos cognitivos, dificultando a análise crítica do comportamento. (LEWINSKI, 2008). Alguns elementos da ocorrência são mais suscetíveis à perda de memória, como diálogos, distâncias e número de disparos. Estressores como exaustão física e nível da ameaça afetam a formação da memória (DI NOTA et al., 2021).
Os efeitos deletérios sobre a memória tendem a melhorar um pouco (em torno de 20%) após 48h do evento (ROSS; MURPHY; HAZLETT, 2012). Por isso, a literatura sugere (DI NOTA et al., 2021) dividir o interrogatório dos policiais em dois momentos. Logo após o incidente, o entrevistador deve focar nos sentimentos e percepções dos policiais, priorizando os fatos que antecederam o confronto armado. Depoimentos mais detalhados, envolvendo acontecimentos ocorridos durante o confronto armado, devem aguardar de 24h a 48h para serem coletados.
Holman e Vilke (2018) abordaram as mortes relacionadas a restrições cervicais (neck holds) – erroneamente denominadas “estrangulamentos”. Algumas restrições se restringem a limitar os movimentos do oponente, sem bloquear a passagem do ar ou o fluxo sanguíneo pelo pescoço. Outras aplicam pressão contra a traqueia usando os braços ou outro instrumento (como bastões). Outro tipo de restrição cervical se limita à constrição das carótidas, as chamadas técnicas de constrição vascular carotídea (lateral vascular neck restraint)1.
Embora haja múltiplos casos relatando mortes relacionadas à aplicação de restrições cervicais, os casos são relativamente raros e, frequentemente, associam-se a outros fatores, como comorbidades e intoxicação por álcool ou outras drogas (HOLMAN; VILKE, 2018). Porém, alguns casos de grande repercussão pública levaram algumas polícias a proibirem o uso desse tipo de técnica. A proibição, contudo, acarretou aumentos do uso de técnicas percussivas (socos e outros golpes contundentes) e do número de suspeitos feridos em decorrência de intervenção policial.
Holman e Vilke (2018) expressam alguma preocupação quanto ao uso de técnicas para a compressão da traqueia, notadamente usando bastões e outros instrumentos rígidos. Todavia, reforçam que o uso de técnicas de constrição vascular carotídea (TCVC) parece ser bastante seguro. Na verdade, até 2018, não havia qualquer caso em que foi provado o vínculo entre a morte de um suspeito e uma TCVC corretamente aplicada. Uma das preocupações dos autores em relação às TCVC diz respeito à compressão da traqueia decorrente da aplicação incorreta da técnica. Outra preocupação é a manutenção da constrição após o suspeito perder a consciência. O ato de perder a consciência em si não parece oferecer riscos a pessoas saudáveis, conforme os estudos citados pelos autores.
Savaser e Chan (2018) trataram de casos de asfixia posicional ou decorrente de imobilizações (positional and restraint asphyxia), apresentando uma revisão da literatura sobre o tema. Em tese, se o suspeito for mantido em decúbito ventral por muito tempo, isso pode interferir na passagem do ar pelas vias aéreas, levando a um quadro de hipóxia e, eventualmente, de asfixia. A posição mais criticada nesse sentido é conhecida no Brasil como “pacotinho” ou posição de restrição máxima (hogtie, hobble ou prone maximal restraint). Em resumo, o suspeito algemado tem também as suas pernas imobilizadas e presas às algemas de alguma forma, podendo apresentar maior ou menor liberdade de movimento. A técnica pode ser empregada com o suspeito em decúbito ventral ou lateral.
Porém, a literatura revisada mostrou que esse tipo de fenômeno parece afetar, em sua maioria, indivíduos sob o efeito de altas doses de drogas (mas não suficientes para causar uma morte por overdose). Na verdade, os estudos mais recentes e com amostras maiores mostraram que manter o suspeito em decúbito ventral parece ser bastante seguro. Mesmo com o peso adicional de policiais pressionando o suspeito contra o solo, não há alterações relevantes na capacidade respiratória do suspeito – experimentos demonstraram isso com cargas de até 100kg (225lbs) sobre os participantes. Ademais, já há vasta literatura médica sugerindo que pacientes acamados ventilam melhor em decúbito ventral que em dorsal.
Além da respiração, outros estudos analisaram os efeitos desse tipo de restrição sobre a circulação de suspeitos. Em resumo, tanto em simples decúbito ventral, quanto imobilizados pelo “pacotinho”, não houve alterações circulatórias relevantes, mesmo com peso adicional sobre os participantes. A conclusão dos autores é categórica: a hipótese de que imobilizações policiais podem colocar “o indivíduo contido em maior risco de asfixia posicional ou por contenção não é respaldada pela literatura atual e pelos dados existentes até o momento” (HOLMAN; VILKE, 2018, p. 159, tradução nossa).
Ao apurar casos de mortes decorrentes de imobilizações policiais, é importante que se estabeleça uma linha do tempo dos fatos. Se existir um lapso temporal entre o término da aplicação da técnica e a intercorrência que provocou o óbito (e.g., uma arritmia cardíaca), é bem provável que o vínculo entre a imobilização e a morte seja pequeno ou inexistente.
Mesmo quando a morte ocorre durante a imobilização, os autores são bastante categóricos ao afirmar que tais mortes súbitas parecem estar mais relacionadas a comorbidades e efeito de drogas que à imobilização em si. A própria ativação metabólica decorrente da luta do suspeito pode ter desencadeado a intercorrência. “Em muitos aspectos, essas mortes não surpreendem mais que a morte de uma pessoa fora de forma com doença cardíaca jogando basquete de forma intensa num fim de semana“ (HOLMAN; VILKE, 2018, p. 159, tradução nossa).
Começamos nossa discussão enfatizando que este estudo não busca justificar más ações policiais cometidas por maus profissionais. Nosso objetivo se limitou a explorar as limitações da atuação humana em situações de alto risco e extremo estresse. Compreendendo esses limites, agora examinamos as implicações jurídicas dessas limitações.
Na análise de casos, o dolo e a culpa são inferidos das circunstâncias, não da mente do autor, conforme destacado por Nucci (2023). Também é conveniente recordar que o conceito de dolo, em sua origem, está atrelado à malícia, à má-intenção, à má-fé criminosa (MIRABETE; FABBRINI, 2010; GRECO, 2017). Por isso, o conjunto da ação no caso concreto deve ser analisado, sobretudo a postura e as atitudes adotadas anteriormente e posteriormente ao ato cometido. Por exemplo, a clara tentativa de inovar o local dos fatos, destruir registros ou coagir testemunhas é um indicativo de má-fé. Ameaças e declarações anteriores contra a vítima podem denotar intenção maliciosa de ofender sua integridade. O histórico do policial envolvido também é relevante, mas um número elevado de participações em situações de uso da força não deve ser automaticamente interpretado como má-fé. A concentração de casos de uso de força em alguns profissionais é bem documentada, tratando-se de um fenômeno comum e multifatorial (KOPITTKE, 2023; TERRILL; INGRAM, 2016).
O procedimento de investigação usual do uso da força policial muitas vezes desconsidera os achados da literatura revisada. A versão da equipe policial é registrada por escrito logo após o evento, o que é menos eficiente que entrevistas (LEWINSKI, 2008). Entrevistas são conduzidas horas após o evento, em delegacias, e meses ou anos depois, em sede de inquérito ou processo penal, o que pode comprometer a precisão da memória (ROSS; MURPHY; HAZLETT, 2012). Além disso, o acesso às filmagens da ocorrência muitas vezes não é permitido antes dos depoimentos, embora revisar vídeos possa resultar em memórias mais precisas a longo prazo (HARTMAN et al., 2017; ROSS; MURPHY; HAZLETT, 2012).
Não é apenas plausível, mas até esperado, que depoimentos de diferentes policiais e testemunhas de um incidente de uso da força apresentem divergências significativas entre si e em relação a outras evidências. Esta frase sintetiza a principal consequência jurídica das distorções de percepção e da memória decorrentes do estresse de combate.
Os estudos ora revisados apontam grandes efeitos do estresse sobre a visão. Ocorre que, em regra, os estímulos que nortearão a decisão pelo uso da força são visuais (ELEUTÉRIO, 2020; ELEUTERIO, 2023; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2021). A primeira consequência disso é que não se deve exigir para a tomada de decisão por policiais precisão milimétrica. Por exemplo, a "Regra de Tueller" estabelece que um suspeito que avança contra um policial com uma arma cortante, perfurante ou contundente a partir de uma distância menor que 10 metros representa um risco iminente à vida do policial (SANDEL; MARTAINDALE; BLAIR, 2021). Assim, justifica o uso de arma de fogo. No entanto, a análise de cada caso deve considerar que a maioria dos policiais (cerca de 60%) experimenta distorções na percepção de profundidade sob estresse elevado. Essas distorções variam em magnitude e direção, podendo ser maiores (LEWINSKI et al., 2016) ou menores (NIEUWENHUYS; CAÑAL‐BRULAND; OUDEJANS, 2012) que a medida real. Outro exemplo é o emprego de munições de impacto controlado – popularmente denominadas “balas de borracha”. Este tipo de munição prevê distâncias mínimas para o disparo. Porém, em uma situação súbita, o estresse pode levar o operador a superestimar a real distância do alvo.
A segunda consequência diz respeito aos detalhes. Sob estresse, a atenção e a memória se concentram em estímulos específicos, especialmente relacionados à ameaça, dificultando a recordação precisa dos eventos. É muito difícil conjecturar o estímulo exato que provocou a tomada de decisão do policial – e.g. se foi a trajetória ou a velocidade do movimento do suspeito, a posição de suas mãos, ou o formato do objeto que segurava. Assim, diferentes pessoas lembram de diferentes detalhes em situações de alto estresse, com possível distorção. No estudo de Hope et al. (2016), 1 em cada 5 policiais teve falsa memória de que o suspeito apontou uma arma, quando na verdade não o fez. No estudo de Ross, Murphy e Hazlett (2012), quase 3 em cada 4 participantes não se recordavam da posição do suspeito ao disparar, sugerindo que a visão da arma pode influenciar a decisão de disparar, tornando outros detalhes irrelevantes.
A terceira consequência é que se torna praticamente impossível para o policial ter pleno controle do que ocorre ao seu redor durante uma situação de estresse intenso. A visão periférica dos policiais sob estresse é reduzida em média em 75% (ROSS; MURPHY, 2018), um efeito conhecido como visão em túnel. Isso nos leva a refletir sobre o elemento subjetivo em casos de morte ou lesão de terceiros provocadas por ações policiais. No uso de armas de fogo, isso pode resultar em "balas perdidas," que ocorrem quando um disparo erra o alvo ou atravessa o alvo inicial e continua sua trajetória.
Diante da imprevisibilidade do resultado – i.e., a elevada probabilidade de que o policial nem perceba a presença de outras pessoas em sua linha de tiro –, não se pode falar em dolo eventual. Resta discutir eventual culpa por imprudência ou imperícia. Para caracterizar a culpa, falta o elemento da previsibilidade objetiva: o homem-médio – ou o policial-médio, no caso – não é capaz de antever a presença de outras pessoas na direção de uma ameaça iminente.
Quanto a disparos que erram o alvo, não se pode alegar imperícia. Estudos indicam que a acurácia média dos policiais em tiroteios raramente ultrapassa 50% (DONNER; POPOVICH, 2019; WHITE, 2006). Portanto, errar um alvo em um ambiente dinâmico não configura negligência no cuidado objetivo. Da mesma forma, um disparo de munição de impacto controlado que visa os membros inferiores do suspeito, mas acaba atingindo partes superiores do corpo, também não caracteriza inobservância do cuidado objetivo.
Entendemos, assim, que a abordagem correta deve ser tratar tais casos como erro profissional, recaindo sobre a hipótese do Princípio do Risco Tolerado (BITENCOURT, 2019; CAPEZ, 2020; MIRABETE; FABBRINI, 2010). Dessa forma, os danos causados devem ser resolvidos na esfera cível. Contudo, a análise do caso concreto pode revelar exceções a essa regra geral.
A primeira exceção refere-se ao uso ilegítimo da força, especialmente quando o emprego é claramente desnecessário ou desproporcional. Ao optar pelo uso da força em circunstâncias claramente ilegítimas, o policial assume o risco de causar danos, agindo assim com dolo. Outra exceção envolve situações com protocolos de conduta estabelecidos, como ocorrências com suicidas ou reféns, onde há regras claras para as hipóteses do uso da força. Ao desrespeitar esses protocolos, o policial age com imperícia.
O estresse também afeta significativamente a audição. O efeito mais comum é a chamada “exclusão auditiva”, com o abafamento ou supressão completa de sons. Assim, é improvável que policiais ou testemunhas se lembrem com precisão do número de disparos ou quais policiais ou suspeitos realmente dispararam. Sons ambientes, diálogos – em 40% a 60% dos casos, segundo Hartman et al. (2017) – e até gritos de informações relevantes para a ocorrência – em mais de 50% dos casos de Ross, Murphy e Hazlett (2012) – podem ser ignorados devido ao estresse. Na era das câmeras corporais e smartphones, é crucial lembrar que sons captados em filmagens podem não ter sido percebidos pelos policiais..
Cuidado adicional deve ser dispensado ao lidar com imagens dos fatos, em especial as captadas por câmeras corporais. Essas filmagens não são afetadas pelo estresse de combate e capturam ângulos diferentes dos policiais. Elas não registram o foco visual e a atenção dos policiais. Mesmo fixada no uniforme ou cabeça, a câmera não capta as mudanças de foco e campo de visão provocadas pelos movimentos dos olhos. Assim, podem registrar estímulos fora do campo de visão do policial ou falhar em captar elementos cruciais à decisão de disparar, como mostrado no estudo de Murray et al. (2024), onde em quase metade das situações que exigiram o disparo de arma de fogo, a câmera corporal não captou elementos cruciais à decisão do policial.
Como mais de 1 a cada 3 policiais envolvidos em confrontos armados experimenta algum tipo de distorção de memória (ROSS; MURPHY, 2018), depoimentos não devem ser tomados como verdade absoluta. Além disso, partes inconsistentes com outras evidências não devem ser presumidas como mentiras deliberadas e, pois, não devem levar ao descrédito do depoente.
A percepção do tempo também é afetada pelo estresse. A maioria das pessoas experimenta os eventos em câmera lenta, enquanto outras os percebem acelerados ou alternam entre essas sensações. Em situações rápidas, isso, aliado à fragmentação da memória, pode distorcer o estabelecimento da ordem dos eventos, dificultando definir uma linha do tempo no curso de uma investigação ou processo.
De acordo com a literatura, dois tipos de circunstâncias anteriores a um confronto armado influenciam a decisão por atirar ou não: um confronto armado anterior e uma informação de que o suspeito abordado estaria armado. Os estudos de Nieuwenhuys, Oudejans e Savelsbergh (2012; 2015) apontaram que há, em média, 1 chance em 5 de um policial submetido a um estresse elevado atirar em um suspeito que se rende – e.g. logo após um confronto armado. Mesmo após a implementação de um protocolo de treinamento avançado, por meio de simulações em realidade virtual, essa taxa de erros não diminuiu. Segundo os autores, a decisão de atirar é uma reação ao confronto armado anterior e é influenciada pela inibição do processamento racional da informação no córtex pré-frontal do cérebro. Fica claro, diante da argumentação sustentada e dos dados apresentados pelos autores, que inexiste o elemento volitivo da conduta, descartando a hipótese de dolo. Além disso, o estudo de Artwohl (2008) revelou que 74% dos policiais envolvidos em confrontos armados agiram com pouco ou nenhum pensamento consciente, agindo como se estivessem em "piloto automático". Essa constatação permite afastar, também, o elemento cognitivo do dolo.
Na análise do caso concreto, a continuidade e a duração das ações dos policiais são determinantes. Eventual interrupção na sequência de movimentos antes do disparo, sugere reflexão prévia e pode indicar dolo na conduta. Além disso, um intervalo significativo entre o avistamento do suspeito e o disparo sugere a presença de elementos cognitivos e volitivos, também podendo ser interpretado como dolo. O tempo de resposta do policial, geralmente em torno de 0,5 segundo (NIEUWENHUYS; OUDEJANS; SAVELSBERGH, 2015), e o ambiente da ocorrência também devem ser considerados. Suspeitos localizados dentro de veículos, edifícios ou atrás de obstáculos podem não ser visualizados imediatamente pelos policiais, aumentando o tempo da ação.
Por sua vez, a informação de que um suspeito a ser abordado estaria armado provoca um aumento de 120% na probabilidade de que o policial efetue um disparo indevido em um suspeito desarmado (TAYLOR, 2020). Este fenômeno reflete o mesmo mecanismo descrito anteriormente, indicando que, a priori, não podemos presumir a presença do elemento volitivo do dolo nestes casos.
Os policiais têm dez vezes mais chances de disparar quando um colega dispara junto deles (DECARLO; DLUGOLENSKI; MYERS, no prelo). Por também se tratar de um comportamento inconsciente e relacionado à sobrevivência, cremos que, como o disparo decorrente de efeito priming, seja difícil de alterar pelo treinamento. Tratando-se de comportamento inconsciente e aparentemente incontrolável, descarta-se também a hipótese de dolo para os disparos dos policiais que atiraram por contágio, devendo a maior responsabilização recair sobre o primeiro a disparar.
Entretanto, é essencial ressaltar que tais efeitos não devem ser interpretados como justificativa para que maus profissionais atirem indiscriminadamente. O estudo de Taylor (2020) revela que, mesmo sem essa informação, muitos policiais erram ao atirar em suspeitos desarmados (28% dos casos). Para fins de controle experimental2, os figurantes do estudo executavam rigorosamente os mesmos movimentos, incluindo suas velocidade e intensidade, independentemente de portarem o telefone ou a arma. No estudo de DeCarlo, Dlugolenski e Myers (no prelo), controle experimental semelhante foi adotado. Contudo, em situações reais, os movimentos de sacar uma arma e pegar um celular são diferentes, de modo que devemos avaliar o comportamento do suspeito. Normalmente, sacar uma arma é um movimento rápido, enérgico e agressivo, além de exigir um posicionamento bastante específico da mão que saca a arma. Por outro lado, pegar um objeto inofensivo da cintura ou ajeitar as vestes geralmente envolvem movimentos mais lentos, acompanhados de uma postura pouco agressiva por parte do abordado.
Isto posto, a avaliação do caso concreto deve também considerar a dinâmica dos fatos e as informações disponíveis. Disparos decorrentes de priming e por contágio ocorrem de forma súbita. Assim, pausas sugerem que quem atirou teve tempo para perceber que o disparo era indevido, caracterizando o dolo eventual, ou mesmo que a conduta foi eivada de malícia criminosa.
Se o suspeito realizou um movimento brusco – v.g. sacar um objeto ou apontar para a equipe policial, ou avançar com o veículo em direção aos policiais (exemplo específico para os tiros por contágio) –, o dolo resta afastado devido à ausência do elemento volitivo. Neste caso, também não vislumbramos culpa, dada a ausência de previsibilidade. Estes cenários se enquadram na hipótese do princípio da confiança (MIRABETE; FABBRINI, 2010): como o dever objetivo de cuidado se dirige a todos, há ações que são esperadas das pessoas em determinada circunstância. Durante uma abordagem policial, sacar um objeto de forma enérgica e apontá-lo para policiais devidamente identificados certamente não fazem parte desse repertório esperado. Por outro lado, se os movimentos do abordado foram mais lentos e menos agressivos, vislumbramos que um disparo do policial estaria eivado de culpa, por imprudência e imperícia.
No caso de disparos por contágio, adicionalmente, deve-se indagar: diante das informações sabidas, era razoável acreditar que poderia emergir dali uma agressão potencialmente letal? Se sim, também não vislumbramos culpa, devido à total ausência de voluntariedade da conduta. Essa interpretação difere da descriminante putativa, pois os disparos foram inconscientes, observando os devidos cuidados até onde foi possível naquele contexto.
Em caso negativo, os policiais que atiraram por contágio teriam agido com culpa por imprudência e imperícia. Caso o suspeito deliberadamente tente evitar o contato com a polícia – e.g. na fuga de veículo ou de suspeito desarmado a pé –, o disparo indevido pode configurar dolo eventual.
O estudo de Lewinski, Hudson e Dysterheftt (2014) demonstra claramente que há um lapso temporal de até 1,6 segundos entre um estímulo para cessar uso da força e a resposta do policial. Este tempo é suficiente para que ocorram, em média, 3 ou 4 disparos após o estímulo, o que pode se aplicar igualmente a golpes contundentes e outras formas de força não-letal. O tempo pode aumentar devido à visão em túnel, à exclusão auditiva e a por condições visuais adversas. Nesse lapso temporal, também pode haver mudanças nas circunstâncias iniciais. Algumas delas podem dificultar a avaliação posterior da legitimidade dos disparos ou golpes desferidos, e.g. movimentos do suspeito no sentido de abaixar-se, estender um dos braços ou virar-se.
Nesses casos, é incorreto falar em excesso doloso, pois é no curso tempo de reação que o organismo recebe e interpreta as informações do ambiente. Durante esse intervalo, o indivíduo age com base no estímulo anterior que justificava o uso legítimo da força, restando ausentes os fatores intelectivo e volitivo, e, consequentemente, o dolo.
Como o indivíduo ainda age em função do estímulo anterior, que autorizava o uso da força, não há voluntariedade na conduta de continuar usando a força diante do novo estímulo. À luz das teorias de Capez (2020), Damásio de Jesus (2013), Greco (2017) e Nucci (2023), a ausência de voluntariedade na conduta implica também a ausência de culpa do agente. Pertencendo o tempo de reação ao domínio das limitações humanas, inexiste inobservância do cuidado objetivo, pois este elemento está relacionado com a conduta esperada "de um homem razoável e prudente no lugar do autor" (MIRABETE; FABBRINI, 2010, p. 133).
Mas como se deve proceder à análise do caso concreto? No nosso entender, deve-se focar na duração e continuidade das ações. Se durante o tempo de reação, o policial continua reagindo ao estímulo anterior, deve-se observar a continuidade de sua ação. Se houver uma quebra dessa continuidade, i.e. uma pausa ou uma mudança da ação, fica claro que o agente não está mais reagindo ao estímulo inicial. Além disso, se a duração da ação ultrapassar o razoável – viz. alguns segundos –, deve-se inferir a influência de outras variáveis, como violenta emoção ou intenção de punir. Em ambos os casos, pode-se vislumbrar um excesso, com dolo ou culpa.
Importa ressaltar o papel das distorções da percepção do tempo ao basear a análise da duração das ações em evidências testemunhais. Os indivíduos sob estresse tendem a perceber o tempo em câmera lenta (HONIG; SULTAN, 2004; KLINGER; BRUNSON, 2009; ROSS; SIDDLE, 2003). Por conseguinte, as testemunhas tendem a superestimar a duração das ações do agente.
Contrações involuntárias foram responsáveis por 24% dos disparos acidentais de policiais nos EUA, ocorrendo principalmente durante abordagens a veículos, edificações, perseguições a pé e ao conter suspeitos. Na maior parte dos casos, resultaram de desequilíbrios, movimentos súbitos com a outra mão ou perda da empunhadura da arma (O’NEILL et al., 2018). A execução de um salto pode provocar contrações fortes o suficiente para disparar a arma do policial em 60% das vezes; o desequilíbrio, em 42%; e a execução de chutes, em 31% a 36% (HEIM, SCHMIDTBLEICHER, NIEBERGALL, 2006b).
Desta forma, nessas circunstâncias, há grande probabilidade de que tenha sido, de fato, involuntário. Os elementos cognitivos e volitivos da conduta do agente se fazem presentes apenas na ação principal – v.g., retomar o equilíbrio, saltar ou movimentar a outra mão. Como o disparo ocorre devido a uma reação fisiológica sem controle do agente, estão ausentes os elementos cognitivos e volitivos do dolo. Como novamente entramos na esfera das limitações humanas, não vislumbramos a incidência de culpa, pela ausência dos elementos da voluntariedade na conduta e da inobservância do cuidado objetivo. Trata-se de acidente escusável e imprevisível, que se conforma à definição de erro profissional (BITENCOURT. 2019).
A literatura é clara quanto à segurança de constrições vasculares carotídeas e a técnicas de imobilização em decúbito ventral no solo. Mortes associadas a esses tipos de técnicas parecem depender de causas externas e incontroláveis pelo agente policial – viz. entorpecimento por drogas, cardiopatia ou outra condição médica anterior. Dois pontos devem ser ressaltados: (1) os estudos indicam que seria improvável que tal intercorrência ocorreria em uma pessoa sóbria saudável – i.e., o suspeito não morreria sem essas condições; e (2) presentes esses fatores de risco, a própria luta poderia ocasionar a morte do suspeito.
Dito isso, não há que se falar em dolo na conduta do agente em caso de morte na hipótese de uma técnica corretamente aplicada. Nem mesmo o dolo eventual se aplicaria, considerando que o resultado era completamente imprevisível ao policial médio. De acordo com a literatura, mortes nesses casos são bastante raras e dependem da conjunção de outros fatores. Também pela imprevisibilidade do resultado, exclui-se a culpa do agente. Tal caso se enquadraria no princípio do risco tolerado, conforme definido por Capez (2020) – se a técnica foi corretamente aplicada, frise-se.
Por outro lado, a investigação pode constatar um erro na aplicação da técnica, a exemplo de uma técnica de constrição vascular carotídea em que o policial insistentemente pressiona a traqueia do suspeito. Neste caso, se comprovado o vínculo entre a técnica e eventual morte, estaria presente o elemento da culpa, por imperícia do agente.
O estudo aborda os efeitos do estresse de combate em policiais, explorando-os à luz das teorias jurídicas sobre dolo e culpa. Destaca a importância de integrar novos conhecimentos científicos ao Direito Penal para garantir decisões mais precisas e justas, adaptando-se as Ciências Jurídicas às evoluções das Ciências Policiais e em outras áreas do conhecimento.
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