Introduction. The perception of the fraction of illegitimate armed confrontations is often overestimated due to various factors. Much of the discussion surrounding police lethality in Brazil focuses on the absolute number of deaths resulting from police interventions. However, there are significant critiques in the literature regarding the use of this indicator. This article contributes to the debate by analyzing armed confrontations involving a Brazilian southern state police department (Military Police of the State of Paraná), which resulted in either death or bodily injury from 2010 to 2023. Method. Data were collected from all Military Police Investigations (IPMs) initiated during this period, using an internal system that tracks records of indictments, criminal charges, and convictions of state military officers. Results. Of the IPMs analyzed, 56% resulted in death and 44% in bodily injury. The Public Prosecutor's Office found evidence of irregularities in 1.68% to 2.63% of the cases involving death and in 0.68% of the cases involving bodily injury. Among the cases tried, there were convictions in less than 20% of the homicide charges and in 33% of the bodily injury charges. A significant portion of officers has been involved in armed confrontations, but a small group accounts for the majority of these incidents. Discussion and Conclusion. Irregularities involving the use of firearms are extremely rare — about 1 to 1.5 cases per 150,000 police encounters. The figures presented here are comparable to those reported in the literature on police forces in developed countries. Possible explanations and solutions are discussed.
Confrontos armados na Polícia Militar do Paraná (2010–2023): desfechos jurídicos e distribuição.
Introdução. A percepção quanto à fração de confrontos armados ilegítimos é superestimada devido a diversos fatores. Grande parte da discussão sobre a letalidade policial no Brasil foca na contagem do número absoluto de casos de mortes decorrentes de intervenções policiais. Porém, há severas críticas na literatura ao uso desse indicador. Este artigo contribui para essa discussão ao analisar o universo dos confrontos armados na Polícia Militar do Paraná, com resultado morte ou lesão corporal, entre 2010 e 2023.
Método. Foram coletados dados de todos os Inquéritos Policiais Militares instaurados no período, usando um sistema interno que mantém registros sobre indiciamentos, denúncias-crime e condenações de militares estaduais.
Resultados. Dos IPMs analisados, 56% resultaram em morte e 44%, em lesão corporal. O Ministério Público encontrou indícios de irregularidades em 1,68% – 2,63% dos casos com resultado morte e 0,68% dos casos com lesão corporal. Dentre os casos julgados, houve condenação em menos de 20% das denúncias por homicídio e em 33% das denúncias por lesão corporal. Uma grande fração dos policiais já se envolveu em confrontos armados, mas uma pequena parcela concentra grande parte dos casos.
Discussão e conclusão. Irregularidades envolvendo o uso de arma de fogo são muito raras – 1 a 1,5 casos a cada 150 mil ocorrências envolvendo abordagens policiais. Os números ora apresentados estão próximos aos números apresentados na literatura sobre polícias de países desenvolvidos. Possíveis explicações e soluções foram apresentadas.
Palavras-chave. violência policial; letalidade; uso da força; polícia militar; Brasil.
Enfrentamientos armados en la Policía Militar de Paraná (Brasil, 2010–2023): resultados jurídicos y distribución.
Introducción. La percepción de la proporción de enfrentamientos armados ilegítimos está sobreestimada debido a varios factores. Gran parte del debate sobre la letalidad policial en Brasil se centra en el conteo del número absoluto de muertes resultantes de intervenciones policiales. Sin embargo, la literatura presenta severas críticas al uso de este indicador. Este artículo contribuye al debate analizando los enfrentamientos armados que involucraron a un departamento de policía del sur de Brasil (Policía Militar del Estado de Paraná), que resultaron en muerte o lesiones corporales entre 2010 y 2023.
Método. Se recopilaron datos de todas las Investigaciones Policiales Militares (IPMs) iniciadas durante el período, utilizando un sistema interno que mantiene registros sobre imputaciones, acusaciones penales y condenas de militares estatales.
Resultados. De los IPMs analizados, el 56% resultaron en muerte y el 44% en lesión corporal. El Ministerio Público encontró indicios de irregularidades en el 1,68% - 2,63% de los casos con resultado de muerte y en el 0,68% de los casos con lesión corporal. Entre los casos juzgados, hubo condena en menos del 20% de las acusaciones de homicidio y en el 33% de las acusaciones por lesiones corporales. Una gran parte de los oficiales ya se ha visto involucrada en enfrentamientos armados, pero una pequeña fracción concentra la mayoría de los casos.
Discusión y conclusión. Las irregularidades relacionadas con el uso de armas de fuego son extremadamente raras, alrededor de 1 a 1,5 casos por cada 150 mil intervenciones policiales. Las cifras aquí presentadas son comparables a las reportadas en la literatura sobre las fuerzas policiales de países desarrollados. Se han presentado posibles explicaciones y soluciones.
Palabras clave. violencia policial; letalidad; uso de la fuerza; policía militar; Brasil.
Ainda que represente uma pequena fração do trabalho policial, o uso da força (UoF) é central no trabalho da polícia (Alpert & Dunham, 2004; Bittner, 1970). A polícia é a única instituição democrática que mantém o poder-dever de usar a força. Destarte, em um Estado democrático de Direito, todo uso da força policial dentro da legalidade representa um dever, posto que garante um direito de outro indivíduo, da coletividade, ou do próprio Estado diante de uma violência real ou iminente.
Considera-se uso da força “ação física empreendida para controlar o movimento ou a liberdade de outro indivíduo” (Alpert & Dunham, 2004). Para que seja considerado legítimo, o uso da força deve seguir uma série de princípios doutrinários, que derivam de normas de direito internacional. No Brasil, os princípios que balizam o uso da força são: legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2021).
A força policial pode ser categorizada em níveis, formando os chamados modelos de uso da força. Em uma classificação mais elementar, o uso da força pode ser letal ou não-letal. Taxonomias e modelos mais elaborados propõem mais níveis intermediários, ou mesmo um gradiente contínuo de uso da força (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2021). Contudo, todos os modelos colocam a força letal como o mais elevado nível de força policial. A maior parte da literatura define como força letal aquela com capacidade ou alta probabilidade de matar (Fyfe, 1979; Jenkins et al., 2024). O exemplo mais notável de força policial letal é o emprego de disparos de armas de fogo.
Além de ser central, o uso da força é também um dos elementos mais críticos do serviço policial. Ao gerar a desconfiança social, casos de uso indevido de força minam um dos alicerces do trabalho policial: a relação de confiança entre a polícia e a sociedade (Alpert & Dunham, 2004; Bittner, 1970). Por isso, o uso da força policial, sobretudo em seu nível letal, representa um dos mais importantes objetos de estudo das chamadas Ciências Policiais.
O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, registrando 37.639 mortes violentas intencionais em 2023 (Barroso & Costa, 2024). Um dos reflexos da violência sistêmica do país é a chamada letalidade policial. Ao longo do ano de 2023, 6.381 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais (Barroso & Costa, 2024). A maior parte das mortes parece ocorrer em intervenções policiais-militares (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023). De acordo com a literatura, elevadas taxas de letalidade policial podem indicar graves falhas nas políticas de segurança pública (Cavalcanti Pedrosa Júnior & Madruga Monteiro, 2022).
A elevada letalidade das polícias, notadamente das polícias militares, leva-nos a questionar a legitimidade e a legalidade dessas ações com uso de força letal, usualmente denominadas “confrontos armados”. A letalidade policial ocupa um crescente espaço na produção acadêmica nacional (Zilli et al., 2023). Entretanto, apenas uma fração da literatura se dedica a analisar os desfechos de investigações sobre mortes decorrentes de intervenção policial (Cavalcanti Pedrosa Júnior & Madruga Monteiro, 2022).
Nesse sentido, (Misse et al., 2015) analisaram as ocorrências com óbito decorrente de intervenção policial no Rio de Janeiro entre 2001 e 2011. Os autores afirmam que a grande maioria dos inquéritos instaurados seguem para o arquivamento – i.e., não se encontram indícios de irregularidades. Porém, não apresentam claramente a fração dos confrontos em que foram encontradas irregularidades, ensejando a denúncia. De todo modo, os autores imputam o número à baixa qualidade nas investigações, em que a “fé pública” da versão dos policiais tem um peso excessivo, denotando um certo corporativismo nas investigações.
Ribeiro e Machado (2016) analisaram 28 casos de confrontos armados, ocorridos em 5 capitais brasileiras, que foram devidamente processados após o oferecimento da denúncia. 10 casos (25,7%) resultaram em impronúncia ou absolvição sumária. Outros 8 (28,6%) resultaram em absolvição pelo júri. Houve condenação em 7 casos (25%). O tempo médio de duração do processo foi estimado em 7 a 11 anos. Os autores atribuem a baixa taxa de condenação à legitimação social dada a casos de execução extrajudicial de criminosos.
Brito (2018) analisou investigações de mortes decorrentes de intervenção policial entre 2005 e 2015 na Polícia Militar de Minas Gerais. O autor teve acesso a 36 Inquéritos Policiais Militares. Desses, 24 foram arquivados a pedido do Ministério Público, enquanto 12 foram encaminhados para a Justiça Comum, em tese, para o oferecimento de denúncia. O autor afirmou que em poucos casos foi possível verificar a participação ativa do Ministério Público junto à condução do IPM.
(Godoi et al., 2020) estudaram as ocorrências de mortes decorrentes de intervenção policial em São Paulo no ano de 2012 – 316 casos. Os autores constataram que apenas 7,6% dos casos estavam relacionados ao crime de tráfico. A maioria dos casos estava relacionada a crimes patrimoniais, “muito mais relevante do que a alardeada “guerra às drogas”” (Godoi et al. 2020, 62). Das ocorrências analisadas, os autores selecionaram uma amostra de 22 para análises qualitativas. Em todos eles, o Ministério Público pediu o arquivamento dos autos, sendo deferido pelo magistrado competente. Em sua discussão, os autores sugerem uma certa desídia ou mesmo conivência por parte do Ministério Público.
(Cabral & Lazzarini, 2015) analisaram 639 processos administrativos instaurados contra policiais civis de um estado brasileiro. Os resultados apontaram que a acusação de homicídio impacta significante e positivamente a probabilidade de exclusão dos quadros da Corporação. Também na esteira dos processos administrativos, (Pereira et al., 2020) estudaram uma amostra de 797 procedimentos administrativos instaurados contra policiais militares de um estado brasileiro. A análise estatística revelou um efeito negativo significativo do tipo penal “Homicídio” sobre a probabilidade de punição administrativa do acusado. Na interpretação dos autores, esse efeito decorreria de uma maior tolerância institucional a esse tipo de prática, resultando em julgamentos corporativistas.
Além da pouca produção acadêmica sobre o tema, o imaginário popular contribui para aumentar a percepção de ilegitimidade sobre os casos de uso de força policial letal. Inúmeros filmes, séries, novelas, livros etc. narram e ressaltam um caráter perverso das polícias. Todavia, ainda que frequentemente baseadas em casos reais, as obras retratam realidades locais, muitas vezes de décadas atrás. Por exemplo, o filme Tropa de Elite e o livro Elite da Tropa retratam a realidade da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na década de 1990 – trinta anos atrás. O best-seller Rota 66: A História da Polícia Que Mata trata de fatos que ocorreram nos anos 1970, há meio século. Mesmo assim, ainda permanece a sensação de que considerável fração das mortes decorrentes de intervenção policial hoje ocorre ao arrepio da Lei. Contudo, devemos destacar que evidências anedóticas e, sobretudo, o meio cultural podem gerar impressões enviesadas.
Esse viés foi salientado por um estudo conduzido pelo Manhattan Institute (Goldberg, 2023) acerca das percepções da população dos EUA sobre a violência policial, com a participação de 1.508 pessoas. Os participantes superestimaram em 5 a 10 vezes a fração de abordagens policiais que resultam em uso de força não letal e em 20 a 25 vezes a fração de abordagem que acabaram em uso de força letal por policiais. Ainda, superestimaram de 4 a 7 vezes a fração de confrontos armados em que o suspeito estava desarmado. No tocante às vítimas de disparos policiais, os participantes subestimaram a fração de pessoas brancas e superestimaram em mais de 100% a fração de negros atingidos por disparos policiais. Em um experimento publicado no mesmo estudo, os participantes que foram informados acerca dos reais números da violência policial apresentaram melhor percepção sobre o uso de força policial. O resultado indica que os reais números devem ser levados ao conhecimento da comunidade.
Outro ponto que devemos salientar é que há críticas na literatura no que tange às severas limitações do uso da simples contagem de casos de mortes decorrentes de intervenções policiais (Jenkins et al., 2024). Segundo essas críticas, também devem ser levados em conta os casos de uso de arma de fogo que não resultam em morte, já que considerável fração das trocas de tiro não são fatais, e se o uso da força foi legal ou não. Adicionalmente, convém lembrar que essa fração de casos que não resultam em mortes depende de fatores que escapam ao controle dos policiais – e.g., a qualidade e a velocidade do atendimento ao trauma. Por isso, os autores (Jenkins et al., 2024) concluem que apenas o número absoluto de mortes decorrentes de intervenções policiais não é uma ferramenta confiável para embasar políticas públicas.
A análise por meio da simples contagem de casos ignora se o uso da forma foi legítimo ou não. Essa limitação compromete a capacidade de tais estudos de abordarem os problemas e falhas no uso da força policial. Devido aos fatores mencionados, ainda segundo os autores, análises decorrentes desse tipo de dados têm grandes chances de conduzir a conclusões equivocadas. Diante do que foi apresentado na literatura, ainda permanece em aberto a questão: do universo de mortes e lesões corporais decorrentes de confrontos armados, em quantos casos o uso da força foi, de fato, ilegítimo?
Como expusemos, até o presente momento, a discussão acadêmica sobre a proporção de casos de uso indevido da força letal tem sido bastante limitada. Este estudo pretende preencher parte dessa lacuna ao propor uma análise de todos os confrontos armados registrados pela Polícia Militar do Paraná entre os anos de 2011 e 2020. Seu objetivo geral é revelar a proporção de casos de uso indevido da força letal pela Polícia Militar do Paraná nesse período. Os objetivos específicos são: (a) explorar os registros de Inquéritos Policiais Militares instaurados em razão de confrontos armados; (b) identificar os casos que resultaram em denúncia oferecida pelo Ministério Público; (c) analisar a distribuição temporal dos confrontos armados; (d) identificar a proporção entre casos que resultaram em morte ou lesões corporais; (e) verificar a concentração de confrontos e denúncias entre policiais; (f) examinar a concentração de inquéritos em diferentes unidades; e (g) determinar a proporção de absolvições e condenações nos casos julgados.
O rito investigativo em casos de confrontos armados com resultado morte varia de acordo com a unidade federativa e o tipo de órgão policial envolvido. Conforme mencionado, a maioria dos casos envolve policiais militares. A rigor, confrontos armados que envolvem militares são considerados crimes militares, conforme o artigo 9º, parágrafos e incisos, do Código Penal Militar. Sua apuração segue o rito estabelecido no Código de Processo Penal Militar. Nesse contexto, a autoridade responsável pela investigação é o comandante da área onde ocorreu o fato, por meio do oficial de dia e, posteriormente, de um oficial encarregado.
Todavia, a Lei nº 9.299, de 8 de agosto de 1996, alterou o Código Penal Militar e transferiu para a justiça comum a competência para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares. Com as mudanças subsequentes, a competência para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis foi atribuída ao Tribunal do Júri, nos termos da alteração promovida pela Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017. Alguns entendem que tal previsão também afetaria a competência para a apuração desses fatos, e não só o seu processamento e o julgamento. A interpretação dessa norma envolve tanto questões jurídicas quanto políticas. Essa divergência hermenêutica, somada à estrutura da Segurança Pública em cada Estado, gera variações nos procedimentos locais de investigação. Um estudo específico seria necessário para explorar as diferentes práticas de apuração de confrontos armados envolvendo policiais em todo o país.
No Paraná, até três investigações independentes podem ocorrer simultaneamente. A autoridade policial civil instaura um Inquérito Policial, enquanto a autoridade militar competente inicia um Inquérito Policial Militar. As primeiras diligências podem ser realizadas por qualquer um dos dois órgãos, embora, geralmente, a Polícia Militar assuma essa responsabilidade. Em alguns casos, membros do Ministério Público comparecem ao local da ocorrência para realizar suas próprias diligências. Os trabalhos periciais ficam a cargo da Polícia Científica, uma entidade policial independente vinculada diretamente à Secretaria de Estado da Segurança Pública e Administração Penitenciária (Constituição do Estado do Paraná, art. 46, III). O Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial (art. 129, VII da Constituição Federal), também pode instaurar, por conta própria, um Procedimento Investigatório Criminal, conduzindo uma investigação independente.
Após a conclusão das investigações, ambos os inquéritos são encaminhados ao Tribunal do Júri – o Inquérito Policial Militar passa primeiro pela Vara da Justiça Militar Estadual, que faz o encaminhamento. Um Promotor de Justiça analisa os procedimentos e decide se apresenta a denúncia ou solicita o arquivamento. Caso necessário, ele pode devolver o caso à autoridade policial civil ou militar para a realização de diligências complementares. No Procedimento Investigatório Criminal, o Promotor também pode oferecer a denúncia. Nesta fase, aplica-se o princípio in dubio pro societate, ou seja, se houver qualquer sombra de dúvida quanto à perfeita legalidade do confronto armado, deve-se oferecer a denúncia. Caso o Promotor solicite o arquivamento, a decisão ainda passa pelo crivo do magistrado.
Em resumo, a apuração de um confronto armado envolvendo policiais militares passa por uma análise criteriosa de um Promotor de Justiça e de um juiz, ambos civis. Essa avaliação ocorre após duas ou três investigações independentes, baseadas em perícias realizadas por órgão externo, que devem concluir sem a menor dúvida que a atuação policial ocorreu de acordo com os ditames legais. Havendo margem de dúvida, é oferecida a denúncia e iniciada a instrução do processo criminal.
Quando o confronto armado resulta em lesão corporal, o processo de apuração é semelhante. Contudo, como não há maiores discussões quanto à natureza militar do crime, normalmente não é instaurado um Inquérito Policial pela autoridade civil. As perícias continuam sendo realizadas pela Polícia Científica. O Inquérito Policial Militar é encaminhado à Justiça Militar Estadual, onde será avaliado por um Promotor de Justiça e por um magistrado de carreira. Nessa etapa, também se aplica o princípio do in dubio pro societate, ou seja, se houver qualquer indício de irregularidade, por menor que seja, a denúncia é oferecida. Além disso, o Ministério Público também pode optar por iniciar uma investigação independente, por meio de um Procedimento Investigatório Criminal.
Para atingir os objetivos propostos, adotamos uma revisão documental. Os dados foram extraídos do SisCOGER, um sistema interno da Polícia Militar do Paraná que registra todos os procedimentos instaurados no âmbito da Polícia Militar do Paraná, além de informações de policiais denunciados e condenados. Como exposto anteriormente, todo uso de arma de fogo que provoque lesão ou óbito é apurado por meio de Inquérito Policial Militar (IPM), independentemente da apuração por outros órgãos. Destarte, todo confronto armado é registrado no SisCOGER. O uso dos dados foi autorizado pela Polícia Militar do Paraná (e-protocolo nº 21.829.783-8). Para a pesquisa, extraímos dados de todos os confrontos armados de 2010 a 2023. Para fins de análise, considerando o tempo que pode decorrer até o oferecimento da denúncia, consideramos apenas os confrontos de 2011 a 2020. O efetivo considerado da corporação para o período foi estimado em 25.000 policiais militares, considerando os ativos em 2021, acrescidos de uma média de 900 exclusões ao ano. A maior parte das exclusões diz respeito a policiais transferidos para a inatividade – ato semelhante à aposentadoria do servidor público civil. Os policiais também podem ser excluídos do serviço ativo a pedido, por óbito, por ordem judicial, ou após processo administrativo.
Adotamos como indicador de uso indevido de força o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, como já empregado por parte da literatura. Após a investigação formal do incidente, o Ministério Público analisa os autos produzidos. Para o arquivamento, a investigação deve demonstrar de forma inequívoca que a ação foi legítima. Caso haja alguma dúvida quanto à legalidade da ação, o Ministério Público deve oferecer a denúncia contra os policiais envolvidos, iniciando o processo-crime. Este é o princípio in dubio pro societate: na dúvida, resolve-se em favor da sociedade, permitindo que a acusação e a defesa se manifestem para que haja um julgamento.
O SisCOGER dispõe de um campo denominado “Confronto Armado”, que deve ser marcado nesses casos. Inicialmente, limitamos nossas buscas aos IPMs com tal marcação. Contudo, como a marcação é feita manualmente pelo usuário responsável pelo cadastro do IPM, suspeitamos que o campo pudesse apresentar inconsistências. Nossas suspeitas foram confirmadas ao verificarmos que alguns IPMs previamente selecionados como sentinelas não foram capturados pela busca. Deste modo, foi necessário adotar outra estratégia de busca.
Foram pesquisados todos os IPMs ano a ano, sendo filtrados os que se referiam a homicídios e lesões corporais e aqueles marcados como “Confronto armado”. A seguir, buscaram-se os IPMs cujas descrições incluíam um dos seguintes termos: “disparo”, “confronto”, “alvejado”, “troca de tiros” ou “arma de fogo”. Os descritivos foram, então, analisados um a um, de modo a verificar se, de fato, tratavam-se de episódios de emprego de arma de fogo. Ao final da busca, restaram incluídos 4.853 IPMs. Para as análises estatísticas, foi usado o teste de correlação de Pearson, no software Jamovi.
Em respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018), os nomes dos envolvidos, as unidades de lotação e os números dos IPMs foram substituídos por códigos aleatorizados, de modo a garantir a anonimização dos dados. Consideramos como unidades todas as lotações existentes nos sistemas da PMPR, incluindo unidades operacionais, comandos intermediários, órgãos de apoio e direção etc.
Dentre os 4.853 IPMs analisados, 2.725 (56%) tiveram resultado morte (homicídios), ao passo que 2.128 (44%) resultaram em lesão corporal. A distribuição por resultado e ao longo dos anos se encontra na Figura 1. As proporções de IPMs com resultado óbito apresentaram variações ao longo dos anos, oscilando de 42% a 68%.
Figura 1
Homicídios e lesões corporais decorrentes de confronto armado ao longo dos anos
Foi detectada uma correlação positiva significativa entre o dia da semana e o número total de confrontos (r(5) = 0,833; p = 0,020), indicando que os confrontos tendem a se concentrar mais nos dias que antecedem o final da semana (ver Figura 2).
Figura 2
Confrontos armados por dia da semana
Gráfico
Em relação ao mês do ano (Figura 3), foi detectada uma correlação negativa significativa entre o número total de confrontos e o período (r(10) = -0,630; p = 0,028), indicando que os confrontos tendem a ocorrer mais no início do ano. No tocante às mortes decorrentes de confronto armado, houve uma correlação negativa marginalmente não-significativa (r(10) = -0,551; p = 0,063), sugerindo que a letalidade também tende a ser maior no começo do ano.
Figura 3
Confrontos armados por mês do ano
Gráfico
Para a análise por dia do mês, desconsideramos o dia 31, já que este dia não existe na maioria dos meses, o que poderia enviesar a análise. Não houve correlação significativa entre o dia do mês e o número de confrontos, homicídios ou lesões corporais, sugerindo que as ocorrências de confrontos armados estão bem distribuídas ao longo do mês (ver Figura 4).
Figura 4
Confrontos armados por dia do mês
Gráfico
Ao mesmo tempo em que um número grande de policiais se envolveu em ocorrências com confronto armado, relativamente poucos concentraram a maior parte dos casos. Envolveram-se em confrontos armados 4.848 policiais (aproximadamente 19,39% do efetivo). Desses, 75% envolveram-se em até 3 ocorrências com este resultado, sendo 50% em um único caso. 393 policiais (8,1% dos envolvidos e 1,57% do efetivo estimado) concentraram 50% das ocorrências envolvendo confronto armado. 1122 policiais (23,1% dos envolvidos e 4,49% do efetivo) concentraram 75% dos casos. Considerando apenas casos com resultado morte, 3.177 policiais (aproximadamente 12,7% do efetivo) envolveu-se em ocorrências no período. Desses, 160 policiais (5,04% dos indiciados e 0,64% do efetivo) envolveram-se em 50% dos casos, ao passo que 454 policiais (14,3% dos indiciados e 1,82% do efetivo) envolveram-se em 75%.
Na maior parte das unidades que instauraram Inquéritos Policiais Militares (IPMs) por confrontos armados no período analisado, houve poucas ocorrências. Em 37 unidades (49,33%), houve até 26 confrontos no período (até dois confrontos armados por ano). Em 38 unidades (50,67%) houve menos de um confronto com óbito por ano. Em 12 unidades (16,00%), houve 156 ou mais confrontos armados no período (um ou mais por mês). Em 4 unidades (5,33%) houve mais de um confronto armado com resultado em óbito por mês. Dez unidades (13,33% das envolvidas) abriram mais de 50% dos IPMs, 8 unidades (10,67%) instauraram mais de 50% dos IPMs por homicídio e 11 unidades (14,67%) instauraram mais de 50% dos IPMs por lesão corporal.
Das 3.577 investigações de confrontos armados entre 2011 e 2020, o Ministério Público ofereceu denúncia em 60 casos (1,68%), sendo 48 pelo crime de homicídio (2,63%) e 12 pelo crime de lesão corporal (0,68%). Entre as denúncias registradas, houve condenação em 7 casos (4 de homicídio e 3 de lesões corporais) e absolvição em 26 casos (21 de homicídio e 5 de lesão). Como o campo relativo às condenações e absolvições é atualizado manualmente, recomenda-se cautela com estes dados. Não é incomum encontrar casos de absolvição que acabam não sendo registrados até que o próprio réu perceba a falha e peça a atualização do campo no sistema. Como isso geralmente ocorre apenas às vésperas de concursos internos ou promoções, a retificação da informação no sistema pode demorar vários anos.
O total de policiais denunciados por homicídios ou lesões corporais nos IPMs analisados entre 2011 e 2020 é de 129 (aproximadamente 0,5% do efetivo). Não houve grande concentração de denúncias: apenas 5 policiais (aproximadamente 0,02% do efetivo e 4% dos denunciados) foram denunciados 2 vezes, envolvendo-se em um total de 16,67% dos casos denunciados. Ainda que 4 deles figurem entre os 25% dos policiais que mais se envolveram em confrontos armados no período analisado, apenas um está entre os 10%. Todos os demais foram denunciados uma única vez.
A literatura corrente destaca as altas taxas de uso de força das Polícias Militares do Brasil, notadamente sua alta “letalidade”. Dados recentes da Polícia Militar do Paraná (Eleuterio-da-Rocha & Silva, 2024) já davam conta que as taxas podem não ser tão elevadas assim: em apenas de 1,35% das ocorrências envolvendo abordagens policiais é registrado algum nível de uso de força. Confrontos armados, especificamente, ocorrem em 3,05% a 5,88% das ocorrências com resistência registradas por equipes de policiamento regular, o que se traduz em 0,04% a 0,08% das ocorrências envolvendo abordagens policiais. Conforme nossos resultados, foram encontrados indícios de irregularidades pelo Ministério Público em 1,68% dos confrontos armados. Combinando essas informações, podemos concluir que as irregularidades envolvendo o uso de arma de fogo acontecem entre 0,00067% e 0,00108% das ocorrências com abordagem policial registrados por equipes de policiamento regular, o que equivale a cerca de 1 a 1,5 casos a cada 150 mil ocorrências. É importante notar que esse número pode estar superestimado, pois, até recentemente, com a implementação do sistema SADE, poucas abordagens de rotina – ou seja, aquelas sem desdobramentos ou chamadas de origem – eram registradas. Ou seja, a fração de ações policiais que resultam em uso indevido de arma de fogo pode ser bastante menor.
No tocante à fatalidade dos confrontos policiais, este estudo revelou que 56% dos casos registrados entre 2011 e 2023 resultaram na morte de um ou mais suspeitos, com tal proporção variando de 42% a 68% ao longo dos anos. As proporções estão próximas às do departamento de polícia da cidade de Los Angeles, nos EUA (Klinger, 2012). A diferença pode ser explicada pelas diferenças no padrão de atendimento pré-hospitalar em diferentes cidades, posto que atendimentos mais céleres estão associadas à redução da mortalidade (Klinger, 2012). Nosso resultado se alinha à literatura internacional no sentido de apontar diferenças regionais e anuais no tocante à proporção de incidentes envolvendo disparos policiais que resultam em óbito (Klinger, 2012). Por outro lado, o número de confrontos na PMPR é bastante superior a esses departamentos.
Até o presente momento, ainda não tínhamos dimensão da proporção desses casos que poderiam ser classificados como ilegais ou ilegítimos. A literatura já aponta graves limitações de conclusões baseadas apenas na simples contagem de eventos de uso de força letal (Jenkins et al., 2024). Os dados analisados indicam que indícios de irregularidades no uso de força letal são raros, perfazendo 1,68% das ocorrências. Em casos com resultado morte, o Ministério Público encontrou indícios de irregularidades em apenas 2,63% dos casos. Já em casos com resultado de lesão corporal, essa porcentagem foi de 0,68%. Os números estão próximos aos do estudo de (Terrill & Ingram, 2016), que reportou terem sido encontrados indícios de irregularidades1 em 1,9% dos 1.128 casos investigados de uso de força em 8 departamentos de polícia dos EUA.
Diante do volume de casos registrados, é esperado que alguns procedimentos investigatórios resultem em conclusões divergentes da verdade dos fatos. Uma explicação rasa pode vir do senso-comum, sugerindo a existência de corporativismo nas investigações. No entanto, é importante ressaltar que esses erros podem ocorrer em ambas as direções: tanto ao deixar de denunciar policiais culpados quanto ao denunciar policiais inocentes.
A redundância das investigações tende a minimizar a probabilidade de erro humano. Nos casos de morte decorrente de intervenção policial, as investigações são conduzidas de forma independente pela Polícia Militar e pela Polícia Civil, ambas supervisionadas de perto pelo Ministério Público, que também pode instaurar um procedimento investigatório próprio. Os exames periciais são realizados pela Polícia Científica do Paraná, um órgão independente. Após a conclusão das investigações, os autos são enviados a um Promotor de Justiça, que decide pela denúncia ou arquivamento, com a decisão sendo avaliada por um magistrado. Insinuar corporativismo implicaria em sugerir uma conspiração envolvendo praticamente todos os órgãos do sistema de justiça criminal.
Uma explicação mais plausível para eventuais erros envolve dois fatores principais. Primeiro, a falibilidade inerente aos seres humanos responsáveis pelas investigações. Segundo, as limitações processuais, técnicas e do sistema de justiça criminal brasileiro como um todo. O Brasil é um país violento, com alta incidência de criminalidade, e é evidente que fatores sistêmicos associados a essa violência também interferem nas más condutas de policiais. No entanto, embora erros ocorram, é improvável que eles sejam tão frequentes a ponto de invalidar a conclusão de que irregularidades no uso de armas de fogo são eventos raros.
Nos Tribunais do Júri, houve menos de 1 condenação a cada 5 julgamentos por homicídio. O número parece condizer com os dados de Ribeiro e Machado (2016), que encontraram uma taxa de condenação de 1 em cada 4 casos. Em contraste, na Justiça Militar, houve condenação em mais de 1 a cada 3 julgamentos por lesão corporal. Deste modo, observa-se que o julgamento pela justiça militar estadual, onde são processados os crimes de lesão corporal, parece ser mais rigoroso do que aquele realizado pelos Tribunais do Júri. Uma interpretação alternativa desses dados sugere que os promotores que atuam na justiça militar estadual tendem a ser mais criteriosos ao oferecer denúncias, apresentando casos com elementos mais sólidos de irregularidade.
Nos dados analisados, percebemos que 19,39% do efetivo estimado envolveu-se em ocorrências de confronto armado, com 12,7% do efetivo tendo se envolvido em ocorrências com óbito. Ainda que pareça uma fração bastante grande, é menor que em países desenvolvidos, como os EUA, onde 27% dos policiais já dispararam a arma em serviço (Morin et al., 2017).
Os casos analisados parecem seguir a Teoria da Concentração Criminal (Farrell, 2015). Regra geral, cerca de 10% das pessoas cometem aproximadamente 50% dos crimes, ao passo que 15% dos criminosos concentram 50% dos delitos cometidos (Martinez et al., 2017). Aproximadamente 1,57% dos policiais ativos (8,1% dos indiciados) figuraram como indiciados em 50% dos IPMs instaurados em decorrência de confrontos armados. Especificamente no caso de IPMs instaurados por mortes decorrentes de intervenção policial em confrontos armados, 0,64% dos policiais ativos (5,04% dos indiciados) foram indiciados em 50% dos IPMs. Por outro lado, as denúncias oferecidas pelo Ministério Público não apresentaram padrão de concentração. O total de policiais denunciados totalizou 0,6% do efetivo, com pouquíssima concentração de casos.
Os dados coletados mostraram que os confrontos armados apurados estão concentrados em poucas unidades, na proporção de 50% dos casos em 13% das unidades. Os casos de mortes decorrentes de intervenção policial mostraram concentração semelhante, com 50% dos casos em 10% das unidades. Os dados sugerem que taxas mais elevadas de envolvimento em confrontos armados podem refletir idiossincrasias do local de atuação ou da natureza do serviço desempenhado. Áreas mais violentas tendem a apresentar maiores números de confrontos, assim como unidades que desempenham atividades mais proativas que reativas.
Realizado o diagnóstico, passamos à proposição de soluções. Inicialmente, é fundamental entender que o uso da força policial e, especificamente, a letalidade policial não constituem um problema em si mesmas, especialmente quando analisadas de forma isolada. Como demonstrado anteriormente, o uso da força letal deve ser uma resposta a uma agressão injusta e potencialmente letal contra o policial ou terceiros. Em casos de uso legítimo da força letal, deixar de empregá-la exporia o policial ou terceiros a grande risco. O uso legítimo de força letal é, portanto, um dever funcional do agente policial. Isso nos leva a concluir que o problema real está nos casos de uso indevido de força. Neste estudo, selecionamos como indicador de um evento de uso indevido de força policial o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público.
Não se pode fazer um único julgamento para todos os casos. É possível que concentrações mais altas estejam relacionadas a perfis de trabalho mais proativos, e não necessariamente a desvios de conduta. O fato de que uma minoria dos casos de denúncias pelo Ministério Público envolve policiais dentre os que mais se envolveram em confrontos armados parece corroborar essa ideia. E mesmo que se considerem apenas os policiais que fazem uso indevido de força, provavelmente, muito provavelmente, fazem-no sob controle de variáveis distintas. (Pinc, 2017) apresentou uma tipologia de policiais no que tange ao uso da força, classificando-os conforme os níveis de preparo profissional e de obediência às regras. A autora sugere que o controle do uso indevido de força passaria pela construção de respostas para cada caso.
Como apresentamos, as ocorrências envolvendo disparo de arma de fogo, notadamente as com resultado morte, podem ser investigadas por até três órgãos diferentes de forma independente. Soma-se a esta redundância o fato de a Polícia Científica do Paraná, órgão responsável pelos exames periciais, ser independente. Desta forma, é possível afirmar que ocorrências dessa natureza são apuradas com grande rigor – ou com mais rigor que ocorrências ordinárias. Ao menos, em teoria. É possível que haja discrepância nos dados apurados em virtude das próprias limitações do sistema de justiça criminal brasileiro. Não é difícil supor que os mesmos problemas sistêmicos que levem o Brasil a ser um dos países mais violentos do mundo também levem a irregularidades por parte de policiais. Brito (2018) verificou pequena participação do Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo das polícias, neste tipo de investigação. Contudo, ainda que se estime, de forma exagerada, que a discrepância seja da ordem de 100%, a fração de casos irregulares continuaria pequena.
Uma solução amplamente defendida para o problema do uso indevido de força é a adoção universal de câmeras corporais. As câmeras poderiam ajudar a elucidar casos de uso de força (Monteiro et al., 2022). No entanto, há evidências experimentais que sugerem o contrário. As imagens de câmeras corporais não capturam os chamados “elementos críticos” em muitos casos (Murray et al., 2024). Assim, sua contribuição para a apuração de casos de uso de força tende a ser limitada, especialmente quando comparada a exames periciais e outras provas. Além disso, o exame das imagens produzidas por câmeras corporais deve ser feito com extrema cautela, pois as imagens não refletem as distorções de percepção sofridas pelo policial, o que pode gerar impressões muito diferentes da realidade em espectadores destreinados (Pezdek et al., 2024; Ross & Vilke, 2018). O custo dos equipamentos tende a fazer com que não seja uma solução eficiente.
A literatura já apresenta algumas alternativas que poderiam permitir não só uma solução mais eficaz para o problema, mas também tornar mais eficiente o emprego dos recursos públicos nesse sentido. Tendo verificado que o princípio da concentração criminal também se aplica ao uso indevido de força, a dissuasão focada mostra-se uma estratégia bastante promissora. A dissuasão focada pode ser resumida em concentrar esforços em indivíduos que, por uma ou outra razão, tendem a concentrar grande número de casos (Braga & Weisburd, 2012). O conjunto da evidência já publicada aponta que focar em indivíduos de grupos (ou unidades, no caso) pode ser mais eficaz que em apenas indivíduos. Possíveis intervenções são conversas regulares com superiores (Owens et al., 2018) e outras medidas que aumentem a sensação de vigilância sobre os policiais com maior concentração de casos de uso de força letal indevida. Neste caso, a adoção de câmeras corporais em policiais que venham a ser denunciados pode reduzir a recorrência de casos.
A principal limitação deste estudo é que foram analisados apenas os casos oficialmente registrados e investigados. O uso de arma de fogo em situações que não resultam em mortes ou lesões nem sempre leva à abertura de investigações formais, o que pode ter subestimado o número de casos de uso indevido de arma de fogo. No entanto, essa limitação provavelmente não se aplica aos casos que envolvem mortes ou lesões corporais decorrentes de intervenção policial.
Outra limitação importante é que, como mencionado anteriormente, o fato de uma ocorrência envolvendo morte ou lesão ter sido formalmente considerada legal não significa, necessariamente, que nenhuma ilegalidade foi cometida. É possível que casos de uso ilegal de força tenham passado despercebidos pelas investigações. Apesar disso, a apuração formal oferece acesso ao maior volume de informações disponíveis sobre o incidente investigado, o que tende a reduzir o viés decorrente da falta de evidências. Assim, o viés se restringe mais à interpretação dos dados coletados do que à ausência de informações.
Estudos futuros devem ampliar a análise para confrontos armados em outras instituições e unidades federativas, permitindo comparações entre os resultados. Além disso, é essencial investigar possíveis vieses interpretativos presentes nas investigações oficiais. Também é necessário aprofundar a análise dos casos de uso indevido da força, identificando causas tratáveis para propor soluções, seja por meio de melhorias no treinamento, alterações normativas ou pela adoção de novas tecnologias.
O presente estudo visou a revelar a proporção de casos de uso indevido da força letal pela Polícia Militar do Paraná no período entre os anos de 2011 e 2020. Concluímos que o uso indevido de força letal se trata de evento raro, perfazendo uma pequena fração dos confrontos armados e uma fração ínfima das abordagens policiais.
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